Natureza Urbana Natureza (NUN) é uma performance audiovisual realizada pelo SONatório + OLapSo (Orquestra de Laptops SONatório). NUN é composta por sons, imagens e gestos relacionados ao ambiente urbano (conturbado), onde encontramos uma paisagem sonora mais lo-fi (em que os sinais sonoros se amontoam e se mascaram) e a um ambiente mais calmo, voltado a uma paisagem sonora hi-fi onde os sons são ouvidos claramente. Estes dois ambientes acabam por se misturar, um adentrando ao outro. NUN apresenta como nossos corpos têm se modificado pelo meio urbano, como nossos gestos têm se automatizado por esse meio mecânico marcado rigorosamente pelo tempo do relógio. Respirar nesse tumulto linear e automatizado é necessário, refletir sobre o que é nosso corpo, sobre o que nosso corpo e mente precisam neste espaço. NUN procura retornar a um ambiente calmo, mesmo estando em meio ao caos urbano.

NUN é composta por três grupos: artistas visuais, artistas sonoros e artistas do corpo. Os laptopistas (assim preferimos chamá-los) são os artistas visuais que projetam as imagens em movimento em uma tela de cinema a partir do laptop e de uma placa de vidro pintada em tempo real filmada por uma webcam, e os artistas sonoros que disparam sons de seus laptops em frente e abaixo do palco, em uma espécie de “fosso”, como a orquestra tradicional na ópera e no ballet clássico. Em cima do palco, os artistas do corpo performam a partir das indicações do soundpainter (uma espécie de compositor-regente). O posicionamento de todos estes artistas é de extrema importância para a imersão do público na performance.

NATUREZA URBANA NATUREZA E O SOUNDPAINTING

Em Natureza Urbana Natureza, as construções sonoras e visuais são realizadas por meio de gestos sinalizados por um soundpainter. O soundpainting é uma língua de sinais criada pelo músico novaiorquino Walter Thompson. Comparando com uma orquestra tradicional onde o maestro rege os músicos presentes, o soundpainter organiza e cria uma composição sonora e visual junto aos performers que improvisam sobre o que o soudpainter pede. Existe um leque de possibilidades que o soundpaiting traz para os artistas, com o uso da voz (canto, fala, sons sibilantes); de instrumentos musicais ou laptops; da dança; da atuação; da condução das imagens projetadas ao vivo; entre outros.

O soundpainting tem uma sintaxe própria para os comandos dos gestos, seguindo a estrutura: “quem?” (qual o sujeito que toca), “o quê” (que ação o sujeito deve produzir, por exemplo: cantar uma nota longa aguda), “como?” (como ele deve produzir, por exemplo, em relação a velocidade: devagar/rápido), “quando?” (quando executará a ação pedida, por exemplo: entrar agora ou entrar aos poucos). Após o regente indicar os gestos para o performer (artistas visuais/sonoros, músicos, dançarinos, atores) escolhido, a ação de fato começa a ser executada pelo artista. Como percebemos aqui, o soundpainting não é voltado somente para músicos, mas também para uma gama de artistas e não-artistas. O uso dessa técnica tem sido positiva em relação ao público e ao processo de criação nas apresentações da OLapSo por essa expansão entre as artes e por nos possibilitar uma regência-composicional aberta, com diversas possibilidades de criação.

ORQUESTRA DE LAPTOP

Dan Trueman (2007, p. 171), fundador da Princeton Laptop Orchestra e ex- membro da mesma, em Why a laptop orchestra?, disserta que a noção de uma orquestra de laptop parece ser paradoxal pela orquestra ser uma instituição quase arcaica e o laptop um novato tecnológico que provavelmente estará conosco por algum tempo. Trueman nos aponta algumas características entre laptops e orquestras. Uma orquestra tradicional é grande, composta por vários instrumentistas; utiliza instrumentos tradicionais da orquestra; os músicos levam décadas de treinamento para se tornarem mestres nestes instrumentos; geralmente a orquestra toca em salas de concertos e teatros, ou seja, espaços amplos e, na maioria das vezes, fechados e geralmente é conduzida. A performance com laptops pode acontecer tanto em espaços grandes quanto pequenos; o som gerado que sai do laptop é amplificado por um sistema PA centralizado ou por um amplificador disponível; a performance com o laptop também pode acontecer com apenas um laptop ou mais. É necessário ainda que o laptopista domine a execução do software escolhido para a manipulação/criação do som. Dominar o instrumento do laptop pode demorar poucos minutos ou muito mais tempo, mas não leva mais tempo que o instrumento de orquestra. Por exemplo, em NUN, haviam alguns integrantes novos na OLapSo que rapidamente conseguiram utilizar bem os softwares em menos duas semanas.

LIVE CINEMA

Mia Makela (2017a), em seu artigo The Practice of Live Cinema, aponta que o cinema silencioso compartilha elementos similares com o live cinema, como na não utilização de diálogos verbais como base para a comunicação e a orquestra que tocava a música do filme ao vivo. Ela comenta que essa tradição continua e que tem ganhado popularidade em muitos concertos. Mas o live cinema vem trazendo novas ferramentas para esse live.

O artista de live cinema se diferencia do vjing por produzir suas próprias imagens. Os elementos fundamentais no qual Makela coloca para o feito dessa prática estão: a projeção (com imagens e uso de programas para manipular/criar os vídeos ou fotografias, já gravados ou produzidos ao vivo com uso de webcams, por exemplo), os criadores/artistas que fazem a apresentação, o público presente e a apresentação no seu local definido.

O cinema ao vivo tem a possibilidade de passar ao público uma sensação, muito mais que um entendimento prévio ou imagens lineares. Mia Makela (2017b) questiona: “Que tipos de histórias podem ser comunicadas sem personagens, diálogos ou palavras?”. Ela comenta que prefere utilizar trecho de música, foto, paisagem ou sensações ao invés de usar texto. Mia Makela além de ser teórica sobre o assunto é também uma artista que faz uso dessa prática, em um de seus artigos ela descreve essa relação entre espectador e o Live Cinema:

O fluxo criativo é construído em torno de um ponto magnético, com intenção de comunicar, não implicitamente, mas com uma atmosfera ou um espaço visual. Esse espaço ou estado visual poderia, esperançosamente, criar a resposta emocional ou inconsciente necessária no espectador. Surpreendentemente, esse tipo de comunicação audiovisual sutil tem criado com frequência a história para o espectador, ainda que nada tenha sido falado. (MAKELA, 2017b, tradução nossa).

Os laptops são bastante presentes nas performances de live cinema, pois muito do que é exibido/tocado é produzido por meio dos laptops. Já percebemos a importância do laptop no live cinema quando Mia Makela apresenta os cinco tipos de espaços existentes neste cinema, como: o digital, o do desktop, o da performance, o da projeção e o físico. O digital é o espaço da memória RAM (Random Access Memory), que está relacionada com o desempenho do laptop/computador . O espaço de desktop é o espaço de trabalho para os artistas de performance com laptop. Para softwares com arquitetura aberta, como MAX/MSP/JITTER, Pure Data ou Isadora, esse espaço é essencial. O espaço da performance é onde a performance está acontecendo, por exemplo: o palco. O da projeção é o espaço onde estão sendo projetadas as imagens. O espaço físico é o espaço compartilhado entre público e performer. Assim, percebemos quanto o laptop está presente nos espaços e na realização do live cinema.

ELEMENTOS DA COMPOSIÇÃO SONORA EM NUN

Na OLapSo, há um uso recorrente de patches (programas) criados no software Pure Data (desenvolvido por Miller Puckette), onde podemos criar sons por síntese sonora até tocar samples (amostras de áudios) pré-gravados. Outro software bastante utilizado é o LMMS, em que usamos os controladores MIDIs e instrumentos virtuais. Ambos são softwares livres. Diferente da orquestra tradicional, a OLapSo busca realizar não só música, mas outros tipos de som como ruídos, sons ambientes, vozes e efeitos sonoros. Cenas sonoras são criadas em performances da OLapSo onde (não) há imagem visual.

Na primeira exibição de NUN, ocorrida em 26 de julho de 2017, no auditório do Centro de Artes, Humanidade e Letras (CAHL) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, a composição sonora foi realizada por seis laptops, um smartphone, dois captadores piezo, todos conectados a uma mesa de áudio, saindo para dois monitores de áudio (stereo) e as vozes de todos do grupo sem amplificação.

A laptopista 1, Carla Caroline, ativava sons pré-gravados a partir do Camaleon (Imagem 01), programa/abstração4 desenvolvida no Pure Data pelo professor Vicente Reis. A s laptopistas 2 e 3, Paloma Cristina e Lígia Franco, ativavam sons ambientes e efeitos sonoros pelo Mixxx, também software livre, criado para djing. Os laptopistas 4, 5 e 6, Sílvio Benevides, Alana Ferreira e Felipe Borges tocavam sons de instrumentos virtuais do software LMMS. O smartphonista, Adler Braga, utilizou aplicativos gratuitos de sintetizadores para Android.

Nesta exibição, utilizamos também dois captadores piezos conectados a um chocalho e a cordas de violão sem o processamento de softwares e pedais (o que, às vezes, costumamos fazer) tocados por Marina Reis. No início da performance, no prelúdio, utilizamos as vozes de todos os integrantes fazendo uma glossolalia5 sussurrada, sons de bichos, chuva e vento.

ELEMENTOS DA COMPOSIÇÃO VISUAL EM NUN

Os laptops da OLapSo não compõem somente a parte do audível de NUN, mas também o visível da performance audiovisual. Os laptopistas 7 e 8, Lucas Bonillo e Daniele Costa, compõem as imagens visuais em movimento por meio do software Isadora, bastante utilizado em performances de dança contemporânea, a partir de fotografias e pequenos vídeos pré-gravados pelos mesmos e manipulados no programa em tempo real. Junto a estas imagens, o mesmo programa mesclava imagens captadas por uma webcam. A webcam foi direcionada para um vidro onde tintas eram aplicadas com um pincel. Criamos, assim, texturas, cores e desenhos abstratos, juntando-se com as imagens escolhidas ao vivo e em decorrência do que estava sendo feito com o som. A tinta no vidro era apagada e preenchida no decorrer da apresentação, assimilando com as cores dos vídeos, fotografias e o ritmo da performance.

As fotografias e vídeos escolhidos tinham como tema ambientes de natureza, cenas de pássaros, árvores e cenas do ambiente urbano, luzes de carros, estradas, paredes de casas, por exemplo. Nessas fotografias, em alguns momentos, foi utilizado o efeito espelhado criando uma outra dimensão na tela, o que fez com que a manipulação na webcam também aparecesse dessa forma.

No final da performance, foi utilizado o software Processing, programa de código aberto, que possibilita graficamente a criação de imagens e efeitos em tempo real. Foi projetado o mapa do Brasil, que recebe manchas semelhantes a óleo, criando bolhas na tela, essas manchas eram feitas em tempo real com a manipulação do mouse contornando a imagem, passando para a tela efeitos caóticos e de explosão.

Além da projeção, havia seis membros do grupo (os artistas do corpo: Leandro Alex, Lorena Dantas, Sibele Sudré, Fernanda Matos, Girlan Tavares e Vinícius Sabino), que performavam no palco junto às projeções. Estes também eram regidos pelo soundpainting. Os movimentos utilizados estavam relacionados aos gestos indicados e aos palletes6 urbano e natureza (rural).

A COMPOSIÇÃO AUDIOVISUAL

Na exibição já comentada, de estréia de NUN, a composição audiovisual foi composta por três momentos: Prelúdio, Natureza-Urbana-Natureza, Poslúdio.

No Prelúdio, todos vivem em um ambiente ainda sem máquina, onde há somente a natureza. Na sala escura do auditório, a tela surgia toda branca. Os artistas do corpo saiam aos poucos do público, um a um, fazendo sons de bichos e da natureza. Os artistas do som faziam a glossolalia sussurrada. Ao chegar ao palco, os artistas do corpo congelavam. Os primeiros sons amplificados ativados foram os das cordas de violão com o piezo e sons de corrente de água de rio. Durante o prelúdio, as imagens de florestas vão surgindo. As cores que mais se sobressaem nesse momento é o verde, marrom e azul.

No desenvolvimento, Natureza-Urbana-Natureza, os corpos iniciam parados no palco e aos poucos alguns vão realizando movimentos leves a partir das indicações da soundpainter Marina Mapurunga que fica de frente para a orquestra de laptops, abaixo do palco e de costas para a tela. Ao reger os corpos, Marina muda seu posicionamento, ficando de lado ou de frente para a tela e palco e de costas para a orquestra. Devido ao projetor estar no fim do auditório (distante do palco e dos laptopistas do som) para que a imagem fosse projetada no tamanho da tela de cinema, os laptopistas da imagem ficaram ao lado do projetor, logo, distante da soundpainter. Os laptopistas da imagem poderiam ficar próximos aos demais, porém, por falta de um cabo VGA ou HDMI (que conecta o laptop ao projetor) comprido, Daniele e Lucas ficaram distante de todos. As indicações de soundpainting para os artistas visuais foram simples, somente entradas e saídas, pois pela distância eles não conseguiam ver com mais detalhes os movimentos da soundpainter. Lembramos que havia uma lanterna apontada para a soundpainter para que, no escuro, os artistas pudessem vê-la. A projeção também acabou ajudando na iluminação da orquestra e da soundpainter .

As imagens se mantinham na mesma tonalidade do Prelúdio, porém ia se transformando a partir do som. Aos poucos, um ambiente sonoro urbano ia surgindo. Sons de máquinas, pessoas conversando, vozes robotizadas, sintetizadores, engarrafamento, ambulância, trânsito intenso, lâmpadas ruidosas iam tomando conta do ambiente. As imagens iam fugindo do verde para as luzes da cidade, o preto, o vermelho, o amarelo e o azul iam piscando, tomando conta da tela. Os corpos iam se tornando mais pesados, com movimentos mais bruscos e mais duros, rígidos. Formas concretas iam surgindo na tela, traços, círculos, quadrados. Imagens e corpos iam se automatizando. Até que o ruído urbano intenso, perde um pouco de sua intensidade, mas permanece. O som das águas do rio vai adentrando a essa cidade. O captador piezo antes captando o chocalho como se fosse o trem em alta velocidade, volta a captar o som das cordas do violão que se assemelham o som de gordas gotas d’água caindo na madeira. A calmaria retorna em meio à cidade. O verde se mistura às cores da cidade intensa. Os sons vão desaparecendo, a imagem vai se tornando preta, os corpos vão parando.

No Poslúdio, uma máquina urge ao longe. O mapa do Brasil surge. As gotas de tinta, agora digitais, pingam no país. O Brasil vai se manchando. Os laptops, os piezos e smartpohone explodem sonoramente: Noises, glitches, máquinas danificadas, tiros, serras elétricas. Todos gritam (sem amplificação). Tudo cessa.

Texto escrito por Marina Mapurunga (coordenadora e membro da Orquestra de Laptops SONatório)

 

REFERÊNCIAS
MAKELA, M.The Pratice Of Live Cinema. Disponível em: http://miamakela.net/TEXT/text_PracticeOfLiveCinema.pdf. Acesso em: 20/07/2017.

M A K E L A , M . The Process of Composing Real-Time Visuals. Disponível em: http://www.miamakela.net/TEXT/Composing_RT_Visuals.pdf. Acesso em: 15/08/2017. SALLES, C. A. Redes da criação: construção da obra de arte. 2a edição. Vinhedo: Ed. Horizonte, 2006.

THOMPSON, W. Soundpainting: The Art of Live Composition, Workbook 1 [with DVD], New York, Walter Thompson Orchestra, 2006.

THOMPSON, W. Soundpainting: The Art of Live Composition, Workbook 2 [with DVD], New York, Walter Thompson Orchestra, 2009.

TRUEMAN, D. Why a laptop orchestra? In: Organised Sound, Cambridge University Press, New York, v. 12, n.2, August 2007, p. 171-179.